Na newsletter da semana passada havíamos planejado que na newsletter desta semana estaríamos tratando da “hierarquia da moeda” na liquidez de mercados tokenizados. No entanto, um blog post chamou nossa atenção para uma questão relevante: a causalidade no mecanismo de transmissão da política monetária.
O blog post referido se intitulada “From Leader to Follower: How the Federal Funds Rate Lost Its Causal Power” (De Líder a Seguidor: Como A Taxa de Juros dos EUA Perdeu Seu Poder Causal), do economista Lars Christensen. Neste post o economista aponta que por anos ele tem argumentado que os bancos centrais fundamentalmente entenderam mal seus próprios mecanismos de transmissão de política monetária. Eles (bancos centrais) acreditam que a federal funds rate guia as variáveis nominais, quando crescentemente o movimento é na direção oposta.
No blog post o economista apresenta evidência empírica através de uma análise structural VAR cobrindo de 1973 a 2025, a qual demonstra esta completa reversão da causalidade. Os resultados, segundo o autor, são marcantes. A federal funds rate – o suposto principal instrumento de política – se transformou de um indicador antecedente, que conformava os resultados econômicos, em uma variável de atraso que meramente segue determinados desenvolvimentos nominais de mercado.
Para o economista a transformação de líder para seguidor não foi acidental – ela emergiu da própria evolução da atividade dos modernos bancos centrais. Os mercados financeiros de alta frequência dos dias atuais representam o estágio final desta evolução. Informação flui instantaneamente, expectativas se ajustam continuamente, e variáveis nominais mudam antes que o FOMC (o Federal Open Market Committee do FED, o Banco Central dos EUA) possa mesmo se reunir.
Os mercados não esperam mais pelas decisões do FED; eles antecipam, precificam, e efetivamente determinam para onde as taxas devem ir. O FED chega em cada encontro para perceber que os mercados já fizerem o trabalho pesado, deixando somente o anúncio cerimonial do que todo mundo já sabe que deve acontecer. Quando o FOMC se encontra, os mercados já moveram as variáveis nominais para onde elas deveriam estar, e o FED meramente valida tais movimentos.
Segundo o economista isto não é um bug no sistema – é a inevitável característica de um transparente regime monetário baseado em mercado operando sem âncoras nominais explícitas. Para ele, o FED engenheirou sua própria “irrelevância” através das próprias reformas destinadas a aumentar sua efetividade.
Mas para entender um pouco mais o que significa este argumento do Lars Christensen, precisamos tecer alguns comentários sobre o que vem sendo entendido como o mecanismo de transmissão de política monetária. O mecanismo de transmissão de política monetária é frequentemente descrito como o efeito que mudanças em um instrumento de política, usualmente o estoque de moeda ou a taxa de juros de curto prazo, tem sobre variáveis agregadas, tais como inflação, PIB, consumo e investimento (1).
Esta descrição limita o escopo do mecanismo de transmissão de política monetária à política monetária, i. e., ações geralmente tomadas por um banco central. No entanto, esta caracterização mostra um relato incompleto de todas as ações de política envolvidas, à medida que a política monetária usualmente tem consequências fiscais: ela afeta o valor da dívida governamental, os custos do serviço da dívida, e os superávits primários (através de mudanças em receitas e outros estabilizadores automáticos).
Em artigo intitulado “Fiscal policy and the monetary transmission mechanism” (Política fiscal e mecanismo de transmissão monetário), os economistas Nicolas Caramp e Dejanir H. Silva revisitam o mecanismo de transmissão de política monetária com um foco nas interações monetária e fiscal. A análise isola o papel que os diferentes instrumentos de política desempenham em conformar o equilíbrio da economia, com um foco no efeito riqueza, i. e., na reavaliação das finanças das famílias e na riqueza humana.
Segundo estes autores a resposta fiscal à política monetária é quase inteiramente negligenciada nas formulações de livro texto de mecanismo de transmissão monetária. Este enfoque usualmente reconhece a importância de uma base fiscal apropriada dando suporte ao equilíbrio, mas seu papel é relegado a um ajuste como pano de fundo. Um exemplo disto é o chamado “Taylor equilibrium”, caracterizado por uma regra de taxa de juros que satisfaça os princípios de Taylor (1993) (2).
Formulações alternativas colocam a política fiscal numa posição central e enfatizam o papel da dívida do governo e os superávits primários em determinarem o equilíbrio econômico. Muito do foco dessa literatura tem sido na determinação do nível de preço, razão pela qual é geralmente conhecido como a Fiscal Theory of the Price Level – FTPL (Teoria Fiscal do Nível de Preço), que tratamos aqui na newsletter Inflação: Um fenômeno monetário ou fiscal? Ambos, mas não somente!, publicada em 09/04/2023.
Deste modo, o trabalho de Nicolas Caramp e Dejanir H. Silva apresenta um arcabouço unificador que identifica os canais através dos quais os diferentes instrumentos de política (monetário e fiscal) afetam as principais variáveis econômicas. A análise ilumina o papel desempenhado pela política fiscal e desvenda sua importância quantitativa.
Olhando para o argumento de Lars Christensen pela ótica do modelo de Caramp e Silva acima introduzido, é possível argumentar que o exercício do Lars Christensen, muito embora meritório, apresenta-se como parcial, uma vez que não levou consideração o fato de que a resposta da economia à política monetária depende fortemente do seu suporte fiscal. Neste sentido, talvez seja precipitado afirmar que o FED tenha “engenheirado” sua “irrelevância”, uma vez que, mesmo sem estar nos seus mandatos, a preocupação com a situação fiscal da economia tem ocupado os bancos centrais mundo afora!
Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre política fiscal e mecanismo de transmissão monetário, não hesite em nos contatar!
- https://www.ecb.europa.eu/mopo/intro/transmission/html/index.en.html; e https://www.bcb.gov.br/en/monetarypolicy/transmission_channels
- Taylor, John B., 1993. Discretion Versus Policy Rules in Practice. Carnegie-Rochester Conference Series on Public Policy, vol. 39. Elsevier, pp. 195–214.