Mais uma vez retornamos às contribuições do Prof. Markus Brunnermeier (da Princeton University, EUA), desta feita apontando para um dos seus mais recentes artigos (em coautoria com Jonathan Payne), intitulado “Strategic Money and Credit Ledgers” (Moeda Estratégica e Registros de Crédito), publicado inicialmente em 2023 no National Bureau of Economic Research – NBER/EUA, e atualizado em sua página da universidade em abril do corrente ano.
O resumo do trabalho é o seguinte. Uma plataforma de negócio dominante de Big Tech (que nós associamos ao nosso conceito de PlatFi – Platform Finance, de inserção das plataformas digitais no setor financeiro) pode estabelecer um ledger (registro) de transações que permita que agentes emitam IOUs (termo que significa “I Owe yoU” – eu lhe devo) (ou seja, “tokens digitais”) comercializáveis, porém não assegurados. Ao contrário de um registro independente, a plataforma pode incentivar o uso do registro e forçar o repagamento, contanto que possa comprometer a liquidez universal da moeda pública. Isso abaixa a taxa de juros de equilíbrio, mas também aumenta a extração de renda pela plataforma. Uma CBDC – Central Bank Digital Currency (moeda central de um banco central) – provê competição, mas pode minar a aplicação do registro de crédito ao reintroduzir uma alternativa universal de moeda pública. Assim, uma alta taxa de inflação enfraquece a alternativa da moeda pública, possibilitando a aplicação de um registro de crédito operado por plataforma.
E como isso (a inserção da plataforma) se manifesta? Segundo o Prof. Brunnermeier, historicamente serviços de pagamentos e de crédito eram providos diferentemente dos arranjos correntes centrados em bancos. Por exemplo, no início da moderna Londres um sistema de crédito emergiu e envolvia promessas comercializáveis, porém sem seguros, chamadas “I Owe You” – IOUs. Comerciantes compravam grãos de fazendeiros em troca de IOUs, vendiam os grãos em Londres e subsequentemente repagavam os possuidores de IOUs. Isto significava que os comerciantes se tornavam ativos participantes tanto nos mercados de grãos e secundários de IOUs. Isto é, um sistema de “bills-of-exchange” (letras de câmbio) surgiu.
No entanto, escalar este sistema se provou desafiador por causa das limitações na manutenção dos registros e da aplicação das IOUs. Muitas propostas foram pensadas para endereçar esses desafios, mas, em última instância, um sistema bancário de empréstimo dependente de garantias emergiu.
Recentes avanços em tecnologias de plataformas de registros e negociações levaram a um renovado interesse fora do setor bancário em escalar um sistema de crédito não colateralizado (sem garantias). As plataformas de Big Techs têm tomado iniciativas para superar os desafios de manutenção de registros e aplicações. Na China, o MyBank da empresa Alibaba oferece aos membros do seu ecossistema empréstimos não colateralizados (sem garantias), enquanto plataformas de cadeias de suprimentos organizam contas de recebíveis comercializados. Na Índia, fintechs (startups do setor financeiro) tentaram oferecer serviços similares sem o suporte de grandes plataformas de negociações e com menos sucesso.
Sendo assim, o Prof. Brunnermeier investiga em seu artigo quando e como uma grande plataforma Big Tech de negociações proverá um registro de compensações onde ofertantes emitem e repagam IOUs não colateralizadas uns com os outros. Para tanto, ele seu coautor desenvolvem um modelo de equilíbrio geral onde produtores precisam emitir contratos não colateralizados de IOUs para comprar bens de insumos, mas não podem se comprometer a repagar. A economia tem duas tecnologias para fazer pagamentos. A primeira opção é uma troca à vista não monitorada que requer um ativo de pagamento (e.g. cash, dinheiro vivo) para ser mantido antecipadamente. A segunda opção é a de que um intermediário maximizador de lucro possa prover um registro centralizado para compensar pagamentos sem cash e contratos de execução.
A tecnologia de registro dos autores pode ser pensada como análoga à de um planejador benevolente que organiza um registro monopolista, mas que é estudada, em contraste, em como diferentes operadores privados motivados por lucro poderiam (ou não) oferecer um registro centralizado que compete com pagamentos padrões em cash. Eles começam com um modelo real de dois períodos, onde num primeiro período, o bem de dotação age como “moeda mercadoria” em negociações à vista, e daí estendem, no segundo período, para um modelo macroeconômico de horizonte infinito com moeda fiat.
No modelo real, os autores consideram um operador sozinho que provê um registro centralizado para a economia. Produtores emitem IOUs para comprarem bens insumos que são gravados no registro. Contratos são automaticamente aplicados quando pagamentos são recebidos através do registro porque o registro automaticamente redireciona os pagamentos para compensar IOUs. Conceitualmente, isto é semelhante a um trabalhador que pega um empréstimo de um empregador e aceita uma porção dos seus salários deduzidos para pagar o empréstimo. A questão na economia imaginada pelos autores é que os agentes não têm que fazer pagamentos através do registro porque há também uma opção de fora (alternativa) para conduzir a negociação à vista com moeda mercadoria “universalmente líquida”. Quando agentes recebem um pagamento à vista, o produtor pode falhar em seus IOUs e daí os produtores podem cobrar preços mais altos aos compradores que podem pagar com moeda mercadoria. Como resultado, em equilíbrio, todos os poupadores preferem armazenar moeda mercadoria e todos os produtores planejam falhar nos IOUs. Em antecipação a isso, nenhum dos IOUs é aceito e o funding (financiamento) seca: a liquidez universal do dinheiro mercadoria previne a emissão de IOUs não colateralizados.
Mais à frente, os autores consideram uma plataforma de Big Tech que opera tanto uma plataforma de negociações quanto um registro centralizado. A plataforma de negociações insiste em que negociações em plataformas devem ser compensadas no registro. Ao fazer isto, ela quebra a liquidez universal da moeda mercadoria. Agora, os agentes que pouparam com moeda mercadoria, mais do que com IOUs, podem estar presos com um instrumento de pagamento sem uso se eles necessitarem comercializar através da plataforma. Se uma fração suficientemente grande de negociações ocorre na plataforma, e os encargos de markup da plataforma são suficientemente baixos, logo os agentes pararão de estocar moeda mercadoria e se torna impossível para os produtores conduzirem negociações à vista em que eles podem falhar. Consequentemente, IOUs são perfeitamente aplicadas e falhas não irão ocorrer. O discernimento chave é que os produtores somente podem falhar em uma economia de registros se os compradores escolhem estocar a moeda mercadoria requerida para negociações escondidas. Logo, mudando os incentivos no sistema de pagamento, a plataforma pode mudar a viabilidade de falha. A dificuldade para policy makers é que a plataforma somente acha atrativo estabelecer um registro que incentiva contrato de repagamento se ela controla uma grande fração dos bens negociados. Isto é, tem-se um monopólio “natural” no contrato de aplicação.
Abstraindo um pouco das nuances do modelo, os autores apontam que o seu achado, de que a habilidade da plataforma de quebrar a universalidade da liquidez da moeda é essencial para a emergência de um mercado de crédito não segurado, tem importantes implicações para a introdução de uma central bank digital currency – CBDC (moeda central de banco central).
A CBDC pode ser pensada como um registro público de governo. O desenho do registro da CBDC determina se um mercado de crédito privado não segurado é viável. Se a CBDC é universal, no sentido de que a plataforma é forçada a aceitar pagamentos CBDC em adição a pagamentos de plataformas de registros, e o registro da CBDC é estabelecido para respeitar privacidade [e.g. com zero-knowledge proofs – provas de conhecimento zero (1)], logo ela essencialmente reintroduz a opção de conduzir negociações à vista escondidas e não pagamentos. Neste caso, o mercado privado de crédito não segurado não é viável. Em contraste, se a CDBC é estabelecida sem privacidade para registro e contratos de aplicação, logo é possível um ambiente de um planejador benevolente organizando um registro monopolista. Assim o governo enfrenta um trade-off entre introduzir uma tecnologia de pagamento que respeita privacidade e uma que assegura contratação eficiente.
Há mais achados que são identificados no artigo do Prof. Brunnermeier, e que deixamos indicado para uma leitura dos mais interessados. Por ora, gostaríamos de deixar como discernimento que a questão da criação de uma CBDC num país não é meramente uma questão binária entre duas visões polarizadas (uma de que atores privados devem ter o direito de emitir moeda, e outra em que somente o governo deva ser permitido de emitir moeda), mas sim uma que envolve (além do que foi aqui tratado) complexos conceitos, tais como uniformidade da moeda, redução da senhoriagem privada e extração de renda, soberania monetária segura, um padrão de privacidade, e interconectividade). Mas isto é tema para uma próxima newsletter.
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- Em criptografia uma zero-knowledge proof é um protocolo em que uma parte (provedor) pode convencer outra parte (o verificador) que alguma dada sentença é verdadeira, sem levar ao verificador qualquer informação além do mero fato daquela veracidade de sentença.